Colaboradores - Valéria Calente

O retrocesso representado pelo fim da Lei de Alienação Parental

5 de Dezembro de 2025
Foto: Divulgação

A discussão sobre a permanência ou revogação da Lei nº 12.318/2010, conhecida como Lei de Alienação Parental (LAP), vem ocupando espaço central no debate jurídico contemporâneo. Em uma sociedade que busca conciliar proteção integral da criança com a prevenção de violências de gênero e intrafamiliares, não há dúvida de que o tema exige sensibilidade, técnicas refinadas de análise e compromisso ético. Entretanto, o movimento que pretende extinguir a LAP na forma ampla e irrestrita como vem sendo proposto não avança na proteção de crianças e adolescentes. Pelo contrário: representa um profundo retrocesso civilizatório, com graves impactos sobre a jurisdição de família, os direitos das crianças e a segurança jurídica, o que posso asseverar não só como advogada com 33 anos de atuação no Direito de Família, mas principalmente como mulher e mãe divorciada.

1. A alienação parental como fenômeno concreto e lesivo

Independentemente das discussões terminológicas — se se prefere falar em "alienação parental""obstrução de vínculos""interferência abusiva" ou "práticas de desqualificação" — o fato objetivo permanece: crianças são frequentemente utilizadas como instrumentos de vingança, manipulação emocional ou retaliação entre adultos em litígio. Esse fenômeno, reconhecido por psicólogos, juristas, assistentes sociais e tribunais, produz danos psicológicos sérios, que incluem confusão identitária, ansiedade, sentimentos de abandono e adoecimento emocional em longo prazo.

A LAP, criticada por alguns como imprecisa ou suscetível a usos indevidos, ainda assim se mostrou, ao longo de mais de uma década, um instrumento capaz de oferecer parâmetros processuais, prever medidas proporcionais e orientar o Judiciário na identificação de comportamentos que rompem, intencionalmente ou não, o elo de crianças com genitores cuidadores. Desconstituir inteiramente esse instrumento significa retornar a um cenário pré-2010, em que cada decisão ficava completamente à mercê de interpretações dispersas, despadronizadas e sem diretrizes claras.

2. Revogação ampla: confundir abuso com alienação é perigoso e injusto

Nenhum intérprete sério da LAP defende que a lei seja utilizada para desacreditar vítimas de violência doméstica ou minimizar relatos de abuso. Esse é um uso distorcido, que merece firme repressão. Porém, extinguir toda a legislação por causa de interpretações equivocadas equivale a abolir a Lei Maria da Penha porque há casos isolados de falsas acusações. O problema não está na norma, mas em sua aplicação inadequada.

A tentativa de equiparar a existência da LAP à suposta "proteção de abusadores" é retoricamente poderosa, mas juridicamente frágil e empiricamente equivocada. O verdadeiro desafio está em qualificar as perícias, fortalecer equipes multidisciplinares, aprimorar protocolos e garantir formação permanente aos magistrados e servidores. Revogar a lei, por outro lado, não solucionará erros pontuais — apenas os tornará mais prováveis, por ausência de critérios.

É um grave equívoco acreditar que uma lei que coíbe a manipulação emocional infantil seria incompatível com a proteção a vítimas de violência de gênero. Ambas as causas são complementares e não concorrentes. Uma mulher vítima de violência precisa ser protegida; uma criança impedida de conviver com o outro genitor por motivações egoísticas ou vingativas também precisa ser protegida. Esses direitos não se anulam: coexistem.

3. A criança como sujeito de direitos: o centro do debate é ela

O maior risco da revogação plena da LAP é que o debate se torne adultocêntrico, guiado por narrativas polarizadas — "proteção das mães" de um lado, "proteção dos pais" de outro — desviando o foco da pessoa mais vulnerável e menos ouvida: a criança.

Sem a LAP, práticas de boicote, manipulação de sentimentos, campanhas de desqualificação e criação de falsas memórias voltarão a ser tratadas como simples "conflitos parentais", sem ferramentas adequadas de identificação. E, quando essas práticas forem descobertas, será tarde demais: o vínculo pode já estar destruído de forma irreversível.

A LAP não surgiu para "forçar convívio". Surgiu para preservar vínculos saudáveis e impedir que uma criança seja privada, sem fundamento, do contato com um de seus pilares afetivos. O princípio constitucional da proteção integral exige que o Estado trate com seriedade todos os fatores que ameaçam o desenvolvimento sadio da personalidade infantil — e a alienação parental é um deles.

4. Consequências práticas do retrocesso

A revogação completa da lei produziria múltiplos impactos negativos, entre os quais:

a) Insegurança jurídica: A ausência de parâmetros legais levará a decisões divergentes entre varas e tribunais, aumentando a litigiosidade.

b) Maior exposição da criança ao conflito: Sem mecanismos específicos, o Judiciário poderá demorar mais a intervir, prolongando disputas e ampliando o sofrimento infantil.

c) Enfraquecimento da atuação técnica: Psicólogos e assistentes sociais perdem uma referência legal estruturante, prejudicando o trabalho interdisciplinar.

d) Aumento de práticas abusivas silenciosas: Ao contrário do que se propaga, revogar a LAP não protegerá vítimas de violência — apenas dificultará a identificação do abuso emocional praticado pelo genitor que instrumentaliza a criança.

e) Recrudescimento das disputas de guarda: Com menos instrumentos jurídicos, cresce o risco de medidas radicais, como guardas unilaterais motivadas por narrativas não comprovadas.

5. O caminho não é destruir: é aprimorar

A LAP pode — e deve — ser aperfeiçoada. O que necessita revisão é o mau uso, não o conceito de proteção contra manipulações psicológicas. Entre os aprimoramentos possíveis estão:

  • Explicitar que a lei não se aplica para descredibilizar relatos de violência doméstica ou sexual;

  • Exigir critérios técnicos padronizados para perícias;

  • Fortalecer equipes interdisciplinares permanentes nas varas de família;

  • Assegurar maior controle judicial sobre prazos e cumprimento de medidas;

  • Responsabilizar profissionais que atuem com parcialidade ou que se afastem da técnica.

Isso sim é progresso. Revogar integralmente é retroceder.

6. O Brasil não pode voltar ao tempo da invisibilidade

Durante décadas, crianças que sofreram manipulação emocional não tinham sequer um nome para o que viviam, meus filhos, por exemplo. A LAP trouxe visibilidade, linguagem jurídica clara, instrumentos proporcionais e mecanismos de atuação protetiva. Aboli-la, na forma ampla e imprecisa como se pretende, recria um cenário de invisibilidade e desamparo institucional.

Numa sociedade que se pretende democrática, proteger a criança é proteger o futuro. O fim da Lei de Alienação Parental, tal como vem sendo conduzido, não representa avanço progressista — mas um retrocesso incompatível com a Constituição, com a doutrina da proteção integral e com os compromissos internacionais de defesa da infância.

O desafio não é apagar a lei. É qualificá-la, aplicá-la com rigor técnico e impedir abusos de qualquer lado. A revogação indiscriminada entrega crianças ao caos e coloca o sistema de justiça familiar de volta ao improviso.

Revogar a LAP integralmente é retroceder décadas. A infância brasileira merece mais, não menos.

 

Valeria Calente

Comentários
Assista ao vídeo