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Código Brasileiro Antidopagem condena atletas à “morte”, segundo alguns juristas

29 de Agosto de 2019

A revisão do Código Brasileiro Antidopagem para evitar a condenação prévia de atletas em julgamentos de doping foi defendida por especialistas durante Congresso realizado na cidade São Paulo que debateu aspectos do Direito do Trabalho e Direito Desportivo. “Devemos, sim, como operadores do Direito, mudar esse jogo. Somos todos a favor do combate ao doping, mas o processo para chegar a isso está muito errado. Julgarmos sob a égide de uma lei que em seus 185 artigos não contém a palavra absolvição? Que jogo limpo é esse?”, enfatizou a advogada Luciana Lopes da Costa, uma das maiores especialistas da área no Brasil.

Luciana Lopes da Costa
 

 Promovido pela Associação dos Advogados Trabalhistas de São Paulo (AATSP), o evento discutiu as consequências para contratos de trabalho ou de patrocínio dos atletas, a partir de condenações que podem resultar em penas de até 2 a 4 anos de suspensão, com proibição desse atleta frequentar o clube ou entidade aos quais esteja ligado até para treinar. Luciana Costa elencou aspectos polêmicos da atual legislação e lembrou que o código brasileiro, criado em 2016 e alterado em 2018, é a íntegra do Código Mundial Antidopagem, de 2015. “Ele deveria seguir a orientação do código mundial, não o ter copiado”, disse.

 Um dos piores aspectos da legislação atual, na opinião da advogada, é a responsabilidade objetiva imposta aos atletas. “Inexistir a palavra absolvição já está contra a Constituição, que garante que todos são inocentes até sentença condenatória transitada em julgado, além de ferir a Declaração Universal dos Direitos Humanos”, argumenta para em sequência elencar as maiores distorções: “Pelo código, as partes de um processo de doping incluem o atleta, a Autoridade Brasileira de Controle de Doping (ABCD), a procuradoria e eventualmente entidades de administração como observadoras. Então nós temos três partes contra o atleta, não tem paridade”.

 A especialista destaca outras desigualdades. “Quando o Código diz que a ABCD goza de presunção de veracidade e a defesa se manifesta antes dessa autoridade, eu não tenho paridade de armas. Quando eu tenho um código em que a defesa se manifesta antes da denúncia, eu não tenho o contraditório, a ampla defesa, eu não tenho um jogo justo”, acrescenta.

 A advogada critica o sistema, pelo qual o atleta jamais provará sua inocência, uma vez que ele nunca será absolvido. “Ainda que ele prove que não deu causa àquele doping. Ainda que ele tenha sido vítima de uma contaminação. Ainda que o médico do clube tenha infiltrado uma medicação que ele nem sabia qual era. Ainda que o Tribunal reconheça isso, esse atleta nunca vai ser absolvido. Tudo isso em busca de uma causa que é a do jogo limpo, que ao meu ver é empoeirado”, contesta. Para ela, em prol dessa causa “estão condenando à morte alguns atletas”.

 “Quando você tira um atleta do cenário por quatro anos, a carreira desse atleta acabou. Mesmo porque ele não pode nem treinar com seus amigos, ele não pode botar o pé no clube. Ele não pode entrar na academia, não pode usar o fisioterapeuta do clube. Ele não pode nada. E ainda está sem salário. Que jogo limpo é esse? ”, provoca.

 Outros impactos

 Também presente ao Congresso, a advogada e ex-procuradora do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem (TJAD), Patricia Reali, explicou que quando o processo é levado ao Tribunal, este fará manifestação para suspender ou não o atleta, e aí começa o conflito com o contrato de trabalho (futebol), ou de patrocínio (outras modalidades). “Dependendo da substância, há uma suspensão preventiva e isso tem total impacto nesse contrato”, lembrou. Segundo ela, muitas vezes um profissional vinculado ao clube indicou uma medicação proibida, mas o atleta não consegue juntar provas ou levar testemunhas ao julgamento. “O atleta acaba absorvendo todo esse peso e responsabilidade no processo antidoping e o clube sai sem nenhum comprometimento”. 

 O médico e Vice-Presidente de Doping da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Fernando Solera, reconheceu a rigidez das condenações, como a suspensão total. “Essa é uma das cláusulas mais severas na área de controle de dopagem”, admitiu. Ele defendeu, no entanto, os pilares que norteiam a legislação: igualdade, saúde e ética. Desde o primeiro julgamento do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem no Brasil, em agosto de 2017, os números apontam 93 casos transitados em julgado e 141 tramitados, envolvendo todos os esportes.

 Segundo Solera, a maior preocupação da CBF hoje é com o doping involuntário. Pelas definições internacionais existem as substâncias “proibidas sempre” e as “proibidas em competição”, mas um atleta pode ingerir um medicamento na quarta-feira e ainda o estar metabolizando no organismo no jogo de sábado. Outra divisão da lista está na substância especificada (medicação, contaminação, com pena de até 2 anos de suspensão) e não especificada (anabolizante, cocaína, com pena de até 4 anos de suspensão).

 De 2006 (antes do Código) a 2019, entre 50.916 amostras coletadas, 36 casos confirmados envolviam estimulantes e 32 foram por corticoides. “Com afastamentos por essas substâncias em primeiro e segundo lugar eu, como médico, acho que temos participação importante nessa estatística”, constata.

 O médico acredita que a grande questão é que um Resultado Analítico Adverso (RAA), a partir do doping de um atleta, pode ter ocorrido por uma Autorização de Uso Terapêutico (AUT) não emitida para um atleta com doença crônica, por uma emergência médica num fim de semana, um tratamento médico com um profissional que desconhece a legislação esportiva, e até por automedicação com analgésico que contém substância proibida. “A questão é bastante emblemática. Afinal de contas, aquele atleta é dopado ou ele está só contaminado? ”, conclui.

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