Cultura - Música

Vestígios, um ep de total encantamento rocker e power pop

3 de Dezembro de 2020

Por Humberto Finatti

2020, o ano que parece nunca terminar, está finalmente chegando ao fim. O ano para ser esquecido totalmente. Os doze meses em que uma pandemia cruel e assassina devorou o planeta, matou milhares de pessoas, infectou outras milhões, arruinou economias e dizimou as artes e a cultura, especialmente a produção musical e todo o circuito que a envolve, da gravação de discos aos indispensáveis shows ao vivo, todos eles (dos pequenos aos megas, da gig no barzinho da esquina ao festival reunindo milhares de fãs) devidamente cancelados ao longo do ano. Assim, quando nada mais se esperava desses aterradores tempos pandêmicos, eis que a já quase veterana banda Criaturas, de Curitiba, nos deu um sopro de esperança e de alegria, além de encantar nossos ouvidos, lançado quase ao final do ano o belíssimo EP “Vestígios”, primeiro título do novíssimo selo alternativo Volts. E quando ouvi o disquinho (ou discão, pela avassaladora qualidade musical que se encerra em suas faixas), me apaixonei imediatamente pelo álbum e pela banda. Meus ouvidos treinados por 30 anos de jornalismo musical não se enganam: é um trabalho que salva o rock autoral independente brasileiro em 2020 de sua ruína quase total.

Criaturas é um quinteto formado por um casal (casado, mesmo), a vocalista e letrista Xanda Lemos e o baterista Bruno Zegonel, além do baixista Caetano Zagonel (irmão de Bruno) e pelos guitarristas e também irmãos (ou seja, banda mais família impossível!) Yan e Yuri Lemos. É a formação mais recente (e muito entrosada, diga-se) de um grupo que já teve outros line ups ao longo de seus quase vinte anos (!) de existência. Sim, eles surgiram na capital paranaense por volta de 2002 e inclusive há uma história algo curiosa envolvendo este jornalista e a banda: na época eu era editor da saudosa (e muito respeitada, na imprensa rock alternativa nacional) revista Dynamite. Pois então: fui fazer uma festa de lançamento de uma das edições da publicação naquela época em terras curitibanas, no finado bar Motorrad. Foi uma noite madrugada insana e total rocknroll, com cinco grupos tocando ao vivo e este jornalista (naquela época bastante loker, rsrs) discotecando. E uma das bandas era justamente a Criaturas. Não me lembro de detalhes do show, óbvio, pelo tempo que passou e que corroeu em parte minhas lembranças, e também pelo estado absolutamente alterado em que fiquei naquela noite (devido ao consumo grotesco de destilados alcoólicos e de “dorgas” ilícitas, ahahaha). Mas de algo me lembro claramente: das músicas empolgantes tocadas pelo quinteto, além de sua ótima performance ao vivo.

Pois quase duas décadas se passaram desde então e cá estou, falando dos Criaturas. Por que? Ora, porque surpreendentemente o quinteto não apenas está mais ativo do que nunca, como lançou há pouco seu novo trabalho inédito de estúdio e que já pode ser considerado, desde já, como um dos grandes lançamentos da seara do rock autoral e independente brasileiro que ainda importa, isso em um ano em que a cultura em geral e a música em particular (e o rock, ainda mais especificamente) estão sofrendo com a pandemia, com a falta de incentivo de toda espécie (graças ao  HORRENDO DESgoverno boçal de extrema direita que está ocupando a chefia executiva do Brasil, um DESgoverno para o qual cultura e música é sinônimo de “comunista”, “esquerdista”, “vagabundo” e “maconheiro” e, por isso mesmo, são considerados “inimigos” a serem exterminados) e com o domínio sem dó no mainstream musical e em todas as mídias (virtuais, físicas, impressas, televisivas etc.) da música sertanoja, a trilha oficial e SELVAGEM do Brasil boçalnaro.

Trata-se de um disco belíssimo em sua qualidade musical, textual e plural (nas texturas e ambiências sonoras, na riqueza das harmonias e melodias, nos timbres extraídos de uma rica a variada gama de instrumentos, nas ótimas letras cantadas em três idiomas, sendo que já falo melhor sobre isso), além de impressionar quando nos damos conta de que os Criaturas ficaram mais de uma década sem gravar material inédito – o último disco cheio e inédito deles saiu em 2009! Explicando: com alguns EPs e discos completos já lançados, Xanda e Bruno (o casal fundador da banda) se mudaram para os Estados Unidos em 2009 (por questões profissionais e de trabalho), onde moram até hoje. Mas nunca pararam de compor e de interagir com os outros músicos do grupo, que seguem residindo em Curitiba, uma capital que, em que pese estar com grande parte de sua população infelizmente voltada ao conservadorismo medieval de extrema direita, deu e continua dando ao rock brasileiro algumas de suas melhores bandas – basta lembrar do finado trio Faichecleres, do grupo Giovanni & O Escambau e do gigante indie Relespública, até hoje um dos melhores nomes do rock nacional de 30 anos pra cá e ainda em plena atividade.

Pois antes que todo o horror pandêmico deste ano começasse, eis que Xanda e Bruno vieram ao Brasil no início de 2020 (pouco antes do carnaval) e, em Curitiba, se reuniram ao trio remanescente dos Criaturas. Amparado e estimulado por Marcelo Crivano, criador do novíssimo selo Volts (do qual falo melhor mais aí embaixo), além de veterano e lendário produtor musical e agitador cultural da cena independente curitibana, o quinteto se trancou num estúdio da cidade e de lá saiu com essa LINDEZA que é “Vestígios”.

São cinco faixas cantadas em três idiomas (!): duas em português, duas em inglês e uma no dialeto africano iorubá (que a vocalista Xanda aprendeu com a enfermeira nigeriana que prestou cuidados médicos ao seu pequenino filho nos primeiros meses de vida dele, nos Estados Unidos, e onde ela, a nigeriana, já trabalhava na área médica há muitos anos, quando foi indicada, pela sua experiencia, para cuidar do bebê do casal fundador do grupo, pois a criança havia nascido com problemas cardíacos e que foram felizmente sendo tratados com o passar do tempo). Além disso o EP se transforma em LP quando as mesmas faixas com vocais são repetidas apenas de forma instrumental. Segundo o producer Marcelo, é uma estratégia musical e conceitual do selo Volts para também valorizar a parte instrumental das canções e estimular os ouvintes a deter uma audição mais atenta apenas à construção sonora de cada uma das composições.

Pois posso afirmar que, em minha já longa trajetória como jornalista musical, que não ouvi nada mais inebriante este ano – e falo isso com a autoridade (modéstia às favas) de quem descobriu (jornalisticamente) bandas como a cuiabana Vanguart e a mineira Pedro Bala & Os Holofotes. Em apenas cinco músicas os Criaturas vão do power e do dream pop ensolarado (mas ao mesmo tempo também com uma certa ambiência melancólica) de “Sunday” (que abre o disco com doces assobios e melodia fofa, altamente radiofônica e que nos remete aos melhores momentos do indie americano noventista do Mazzy Star de Hope Sandoval, ou ao trio inglês também noventista do Drugstore, liderado pela brasileira Isabel Monteiro), à psicodelia avassaladora de “Réquiem” (cantada em português), onde seus mais de seis minutos de intricada (porém totalmente acessível) elaboração sônica nos remete às melhores bandas psicodélicas californianas (Byrds, Jefferson Airplane, Grateful Dead) dos sixties. Tudo começa com um piano suave. Depois entra o vocal melódico e sedutor de Xanda. Quando você se dá conta já está completamente entorpecido, como se estivesse numa god trip lisérgica movida a ótimo doce e ótima marijuana. No meio, entre uma e outra (que abrem e fecham o EP), ainda temos as pérolas que são a faixa-título (sacudidíssima pra se dançar), a cantada em iorubá (“Omalola”) e “Better Times”. Traduzindo: um discaço, que tem potencial para ser muito bem recebido nas rádios e demais plataformas de divulgação (físicas ou virtuais) americanas, inglesas e – sim! – brasileiras também. Quem sabe os Criaturas serão a banda que irá recolocar o tão maltratado e esquecido rock nacional no mapa musical brasileiro.

Agradeço imensamente à banda e ao selo Volts por nos dar lançamento musical e rocker tão magnifico em um ano onde tudo parecia absolutamente perdido. Se houver JUSTIÇA na cultura pop e na música mundial, Criaturas vai longe com este EP, muito longe. E torço por isso desde ontem!

Adendo: “Sunday” ganhou um belíssimo vídeo em primorosa fotografia P&B, que pode ser visto aqui: https://www.youtube.com/watch?v=bbNy14fYYXY

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O SELO VOLTS, UM NOVO ESPAÇO MUSICAL CORAJOSO QUANDO O ROCK BRASILEIRO MAIS PRECISA DELE

Sim, todos nós sabemos como está a cultura e a música nesses tempos cruéis do Brasil boçalnaro. Com o país DESpresidido por um DESpresidente GORILA e TROGLODITA, e que é INIMIGO declarado da cultura e do rocknroll, a cena rocker autoral e independente nacional nunca sofreu tanto como agora para ter espaços midiáticos (virtuais, impressos, televisivos ou radiofônicos) e físicos (casas de shows pequenas ou médias que seja, algo que se agravou ainda mais com a pandemia do Corona vírus). Assim, é sensacional saber que um produtor cultural e agitador musical de Curitiba, há anos envolvido com a cena rock da capital paranaense, se disponha a criar um novo selo musical que dê suporte e voz para essa cena.

O selo é o Volts. Seu idealizador é Marcelo Crivano, 47 anos, ex-advogado, atual sócio de uma construtora de porte médio e que sempre esteve envolvido com a cena musical de Curitiba. Foi "Criva" (como é carinhosamente chamado pelos amigos) quem produziu artisticamente um dos melhores álbuns da história do rock independente brasileiro, o "As Histórias São Iguais", lançado pelo até hoje gigante trio curitibano Relespública, em 2003.

Crivano se encantou com as novas composições do Criaturas (de quem é velho amigo) e resolveu bancar as gravações e lançamento do magnífico EP "Vestígios". E também decidiu, ao mesmo tempo, criar o Volts para fazer o lançamento do disco. "A Volts é um sonho antigo", diz ele. "E esse sonho fez sentido de novo quando ouvi 'Sunday' [faixa de abertura do EP dos Criaturas] no violão e na voz da Xanda Lemos [vocalista da banda]. Fiquei tão alucinado com a música que arrumei tudo em pouco tempo e em menos de 20 dias estávamos ensaiando com toda a equipe da banda e de produção, do que está sendo o primeiro lançamento da Volts, o EP 'Vestígios'", conta ele, entusiasmado.

Crivano sabe que os tempos estão dificílimos para a cena independente, especialmente para o rock autoral alternativo. Mas nem por isso se amedronta, e já faz planos para 2021: "a Volts já tem outros projetos engatilhados para o ano que vem, como o novo disco da Relespública, que resgata a primeira fase da banda, entre 1989 e 1996", adianta. "E ainda agora já lançamos uma edição remasterizada de 'As Histórias São Iguais', o disco 'clássico' da Reles e que até hoje é considerado um dos clássicos da cena rock independente brasileira", conclui.

Pois em um momento em que a cena rock nacional alternativa precisa como nunca de suportes como este do selo Volts para sobreviver, Marcelo Crivano merece todos os elogios pela sua iniciativa. Que o Volts vingue com força e traga pelos próximos anos muitos ótimos lançamentos e ótimas alegrias ao atualmente tão combalido rock independente brasileiro.

(H.F.)

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Para saber mais sobre os Criaturas, vai aqui: https://www.facebook.com/bandacriaturas.

Para OUVIR o lindíssimo EP “Vestígios”, vai aqui: https://www.youtube.com/playlist?list=PL5FS7nqpMuxCIftGFZyloUMdtcDBYEFCa.

(Humberto Finatti é jornalista musical e de cultura pop há 30 anos, com passagem pelos principais veículos de mídia do Brasil, como os jornais O Estado De S. Paulo, Folha De S. Paulo, Gazeta Mercantil e as revistas IstoÉ, Bizz, Interview e Rolling Stone Brasil)

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