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Foto: Freepik - IA |
Por Rodrigo Merli Antunes
Tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que visa criar um novo crime para a prática do homicídio no contexto do tráfico de drogas.
Trata-se do Projeto n° 3.786/21, iniciado no Senado Federal, e que, sem maiores discussões por parte de juristas, profissionais da área e até mesmo do próprio Plenário da Casa, tende agora a ser avaliado pela Câmara dos Deputados.
Em que pese os aparentes benefícios da proposta, em especial o aumento da pena para os crimes contra a vida perpetrados em tal contexto, é certo que ela esconde muitos inconvenientes, assemelhando-se, na realidade, a um verdadeiro presente de grego, mais precisamente ao Cavalo de Troia retratado nos poemas épicos de Homero.
Talvez a principal consequência da aprovação do projeto seja a retirada da competência do Tribunal do Júri para processar e julgar esse novo delito, passando ele para a atribuição dos juízes e tribunais togados, transfigurando-se em uma espécie de tráfico de drogas com resultado agravador em detrimento do homicídio perpetrado em tal contexto. Em outras palavras, a ideia é a de que o povo não mais participe diretamente do julgamento dessas infrações penais, almejando os idealizadores do projeto aquilo que atualmente já ocorre com o crime de latrocínio (roubo com resultado morte).
Trocando em miúdos, a real intenção é na verdade ampliar uma inconstitucionalidade evidente, tirando do Cenáculo Popular não só o roubo com morte dolosa (o que já ocorre), mas também o homicídio motivado por questões relacionadas ao narcotráfico, algo que a Carta Magna da República sempre vedou expressamente (de acordo com a CF/88, toda morte intencional deveria ser julgada pelo Tribunal do Júri, independentemente do contexto, do motivo e/ou dos delitos eventualmente conexos - CF, art. 5°, XXXVIII, alínea “d”)
Entretanto, como a Constituição Federal de 1988 tem sido um mero detalhe no cenário jurídico e político nacional, tal inconstitucionalidade vem sendo mais uma vez ignorada, argumentando os defensores da proposta (inclusive um ex-juiz federal bastante conhecido) que ela é benéfica para todos, eis que poupará os cidadãos comuns de julgarem réus perigosos e ligados a grandes organizações criminosas.
Tal justificativa, entretanto, muito embora sedutora (tal como o Canto da Sereia), não encontra respaldo nos dados empíricos possuídos, sendo fruto, na realidade, de pessoas que não conhecem absolutamente nada da Justiça Popular.
Ao que parece, há indivíduos mal-intencionados de um lado dessa empreitada, bem como diversos cidadãos extremamente ingênuos de outro. E é exatamente por isso que o projeto vem caminhando sem qualquer reflexão mais aprofundada.
Consoante já dizia Saul Alinsky (o guru de Obama e Hillary), “a causa nunca é a causa, mas sim a revolução”.
Há cerca de 22 (vinte e dois) anos atuando no Júri Popular, nunca testemunhei ou tive conhecimento de algum jurado ter sido ameaçado, constrangido e/ou corrompido por qualquer indivíduo interessado em um determinado veredicto, seja ele em um sentido ou em outro. A bem da verdade, parece-me muito mais difícil exercer influência negativa sobre 25 (vinte e cinco) diferentes cidadãos do povo que poderão julgar uma causa no Júri do que providenciar o mesmo em relação a um único juiz togado. Em outras palavras, a sobredita preocupação dos idealizadores do projeto com a integridade física e a imparcialidade dos jurados não passa de um reles sofisma, este a não se sustentar a partir de uma mísera observação da realidade.
Mas isso não é só!
Como sabido, no Tribunal Popular os jurados decidem em sigilo, com soberania e de acordo com suas próprias consciências, não estando eles subordinados a este ou aquele ordenamento jurídico, ao entendimento predominante da doutrina penal e processual penal e muito menos aos precedentes jurisprudenciais existentes, todos eles, invariavelmente, extremamente benevolentes e simpáticos com a bandidagem em geral.
Em outras palavras, o Tribunal do Júri brasileiro condena muito mais do que absolve; manda prender muito mais do que soltar; e tem mais coragem, segurança e isenção do que muitos tribunais togados.
Aliás, costumo dizer em meus julgamentos populares que, se ainda existe um órgão do sistema de justiça criminal brasileiro que efetivamente funciona no Brasil, este órgão se denomina Tribunal do Júri. Nele, é bem verdade, o cidadão comum tem como ponto de partida a legislação em vigor, mas possui também o poder de revogá-la no caso concreto quando considerá-la benevolente, injusta, contrária ao bom senso, aos anseios sociais e/ou ao próprio direito natural. E, convenhamos, o ataque a tudo isso é o que mais temos visto no direito codificado e nos Tribunais pátrios. Nada melhor que o Júri, portanto, para colocar as coisas em seus devidos lugares!
Além disso tudo, o povo decide com soberania, isto é, nenhum Tribunal togado brasileiro pode substituir o mérito de uma decisão popular. Podem anular o veredicto por questões processuais ou procedimentais e até mesmo uma única vez pelo mérito, mas não podem se sobrepor ao decidido pelo cidadão comum em uma segunda oportunidade. E talvez seja exatamente isso que incomode tanto os donos do poder!
Se as causas relacionadas aos homicídios no contexto do tráfico de drogas forem deslocadas para os juízes e tribunais togados, fatalmente o número de absolvições nesta seara irá aumentar exponencialmente. Vinculados de modo obrigatório e restrito à benevolente legislação que possuímos, aos entendimentos doutrinários e jurisprudenciais cada vez mais permissivos, e sujeitos mais facilmente às pressões externas oriundas do crime organizado (visto que o juiz de direito não pode se valer do sigilo em suas decisões, ao contrário do jurado), parece-nos claro que somente um ingênuo, um incauto ou um beócio poderá acreditar que o combate ao narcotráfico ficará mais intenso com a nova ideia.
Consoante preconizava Olavo Luiz Pimentel de Carvalho, “não existe nada mais perverso neste mundo do que a inocência perversa. Quem não enxerga o mal, trabalha para ele. Todo inocente útil é útil ao diabo.”
Aliás, basta observarmos nas últimas décadas o que vem ocorrendo em nosso país em relação às decisões judiciais ligadas ao narcotráfico.
Mesmo considerado hediondo pela Constituição Federal de 1988, de lá para cá os tribunais pátrios esvaziaram por completo esse conceito, chegando ao ponto de dificultarem e inviabilizarem em absoluto as investigações policiais, as buscas e apreensões domiciliares, os reconhecimentos pessoais e fotográficos, a punição em regime integral fechado e até mesmo a própria tipicidade de algumas condutas, havendo hoje em dia traficantes de drogas sentenciados a cumprir pena em regime aberto, com prestação de serviços à comunidade e até mesmo com direito a receberem seus helicópteros de volta como se nada tivesse acontecido!
Como se tal já não bastasse, até mesmo o porte de determinada quantidade de entorpecente passou a ser um irrelevante penal, não havendo dúvidas de que caminhamos a passos largos para um Narcoestado, existindo informações robustas de que algumas organizações criminosas já se infiltraram nos Poderes da República, estando a financiarem até mesmo candidatos para os concursos de ingresso na Polícia, na Magistratura e no Ministério Público.
Por que, então, tirar do povo a possibilidade de julgar diretamente os seus algozes? Qual interesse existe por trás de tudo isso? Será que a finalidade é realmente proteger o jurado? Ou será que a intenção é retirar do cidadão conhecedor da realidade e das agruras e mazelas de nosso país a possibilidade de se fazer justiça efetiva, sem intermediários e interpretações jurídicas cada vez mais benéficas aos criminosos?
Com efeito, chega de necropolítica, de necrodireito e de necro-hermenêutica! O cidadão de bem não aguenta mais!
Se a intenção é majorar a pena do homicídio no contexto do narcotráfico, basta então aumentar a pena do homicídio em tal hipótese, sem realizar-se, contudo, a manobra ardilosa de retirar do Júri a competência para julgamento da questão.
Em dias em que muito se fala sobre atos antidemocráticos, retirar do povo o direito de julgar seus assassinos constitui não só um erro, uma inconstitucionalidade e um retrocesso, mas também uma evidente e absoluta covardia. Daqui a pouco, fatalmente passarão a sustentar que o cidadão comum não deve votar para mais nada, algo completamente avesso aos valores preconizados em nossa Carta Magna, em especial ao de que todo o poder emana do povo, que o exerce por intermédio de representantes eleitos ou diretamente.
Espero, sinceramente, estar errado em minhas elucubrações, não sendo estas as verdadeiras intenções, pretensões ou desejos dos idealizadores e apoiadores do tal projeto. Todavia, em tempos como os atuais, onde a desmoralização e a desestabilização da sociedade são almejadas por muitos, sempre com o propósito de se gerar crise e caos social, não custa muito deixar um pequeno alerta contra eventuais engodos.
Consoante preconizava o gigante Alexander Soljenítsin (autor do best-seller Arquipélago Gulag), “que a mentira venha ao mundo; que ela até triunfe; mas não por intermédio de mim”.
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Sobre o autor:
Rodrigo Merli Antunes
Promotor de Justiça no estado de São Paulo e pós-graduado em Direito.
Autor da coletânea de artigos intitulada Se eu cair, vai ser atirando! e do livro Perdão x Castigo – vieses teológicos no Tribunal do Júri.
Coautor da obra O tribunal do júri na visão do juiz, do promotor e do advogado e do livro Ministério Público e Tribunal do Júri – Guardiões da vida e da justiça.
Membro do MP Pró-Sociedade.