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1. Introdução
A cidadania italiana por descendência (ius sanguinis) sempre foi um dos pilares do ordenamento jurídico da Itália, refletindo um modelo que valoriza o vínculo de sangue como elemento central na constituição do status civitatis. Essa tradição histórica permitiu, durante mais de um século, o reconhecimento da cidadania italiana a filhos, netos, bisnetos, trinetos e tataranetos de cidadãos italianos, independentemente de gerações e de vínculo territorial.
Contudo, em março de 2025, o governo italiano aprovou o Decreto-Lei nº 36/2025, posteriormente convertido na Lei nº 74/2025, que alterou substancialmente a Lei nº 91/1992, impondo restrições inéditas ao reconhecimento da cidadania por descendência.
Este artigo analisa os principais aspectos da nova legislação, as reações do Poder Judiciário italiano — em especial o relevante precedente do Tribunal de Turim — e as perspectivas para os descendentes brasileiros de italianos diretamente afetados.
2. O novo regime jurídico da cidadania italiana por descendência
A Lei nº 74/2025 introduziu o artigo 3-bis na Lei nº 91/1992, que estabeleceu restrições ao reconhecimento da cidadania italiana para descendentes nascidos no exterior. Salvo exceções, passou a ser exigido que o pedido administrativo ou judicial tivesse sido protocolado até 27 de março de 2025. As exceções incluem:
- Pedido apresentado ou agendado até a data-limite;
- Ascendente de 1º ou 2º grau com cidadania exclusivamente italiana;
- Pai ou mãe residente na Itália por ao menos dois anos antes do nascimento do filho.
Essa normativa rompe com a tradição histórica do ius sanguinis, ao afastar o caráter originário da cidadania por descendência e ao condicionar seu reconhecimento a prazos e novos requisitos, com efeito retroativo.
3. A decisão do Tribunal de Turim e a arguição de inconstitucionalidade
Em 25 de junho de 2025, o Tribunal de Turim, sob relatoria do juiz Fabrizio Alessandria, remeteu à Corte Constitucional Italiana arguição de inconstitucionalidade do artigo 3-bis da Lei nº 91/1992.
O Tribunal sustentou que a norma:
* Viola os princípios constitucionais da igualdade, da segurança jurídica e da confiança legítima (arts. 2º, 3º e 22 da Constituição);
* Afronta os compromissos internacionais assumidos pela Itália (art. 117 da Constituição), entre eles:
* O Tratado da União Europeia e o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (cidadania europeia);
* O Quarto Protocolo Adicional à Convenção Europeia dos Direitos Humanos (direito de entrar no território do próprio Estado);
* A Declaração Universal dos Direitos Humanos (proibição de retirada arbitrária da nacionalidade).
A decisão destacou que o direito à cidadania iure sanguinis é originário, adquirido no nascimento, sendo o pedido administrativo ou judicial ato meramente declaratório.
4. Violação ao direito internacional e ao direito europeu
O Tribunal de Turim indicou que o artigo 3-bis contraria:
- O art. 9 do TUE e o art. 20 do TFUE, que instituem a cidadania europeia e proíbem a perda arbitrária do status;
- O art. 3, §2 do Quarto Protocolo Adicional à CEDH, que assegura o direito de ingresso no país de origem;
- O art. 15 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que veda a retirada arbitrária da nacionalidade.
O Tribunal remeteu-se à jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, que exige exame individualizado e proporcionalidade em casos de retirada de cidadania (Rottmann, Tjebbes, X vs Dinamarca).
5. Impacto sobre os descendentes brasileiros de italianos
A nova norma impactou:
- Brasileiros que preparavam documentação para requerer cidadania;
- Quem tinha processos consulares pendentes ou agendados após 27/03/2025;
- Quem planejava ingressar com ações judiciais.
Se a Corte Constitucional acolher a arguição de inconstitucionalidade, os efeitos podem incluir:
Reabertura de processos suspensos ou indeferidos com base na nova lei;
Restauração do direito ao reconhecimento da cidadania além da segunda geração;
Reafirmação do caráter originário, permanente e imprescritível da cidadania italiana por descendência.
6. Perspectivas e importância do controle de constitucionalidade
A remessa do caso à Corte Constitucional reforça o debate sobre os limites da atuação do legislador em matéria de cidadania e a proteção de direitos adquiridos. O episódio evidencia:
* O papel da via judicial na defesa dos direitos dos descendentes;
* A pressão sobre o governo italiano para revisão da norma;
* A relevância da mobilização internacional das comunidades ítalo-descendentes.
7. Conclusão
O artigo 3-bis da Lei nº 91/1992 representa um desafio jurídico significativo ao direito à cidadania italiana por descendência. A decisão do Tribunal de Turim inaugura um novo capítulo na defesa desse direito e reforça a esperança de milhares de descendentes no Brasil e no mundo.
O julgamento pela Corte Constitucional poderá não apenas restaurar direitos históricos, mas também reafirmar os valores do Estado Democrático de Direito e o compromisso da Itália com os tratados internacionais.
8. Referências
* Decreto-Lei nº 36/2025 e Lei nº 74/2025.
* Constituição da República Italiana.
* Tratado da União Europeia (TUE) e Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).
* Declaração Universal dos Direitos Humanos.
* Quarto Protocolo Adicional à Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
* Jurisprudência do TJUE: Rottmann, Tjebbes, X vs Dinamarca.